Um final de tarde de Verão. O Sol despede-se do Restelo com
intensidade. Olhos cerrados e sobrancelhas franzidas acompanham o calor
do rosto. Há uma velha num muro. Oitenta e três anos de experiência,
oitenta e três anos de vida, de convívio, de dor e de amor. Conversámos e
percebi que na vida há mais do que a manhã, do que a tarde,
do que a noite, do que a Primavera, do que o Verão, do que o Outono e
do que o Inverno. Há mais do que o tempo e mais do que o espaço. Há o
gesto, há o medo. Há o defeito e a acção. Toda de preto e sozinha no
espaço. Louca de saudades e cansada do tempo. Perdeu Augusto há mais de
doze anos. Viviam juntos ali no bairro. Tinham uma casa pequena. Nunca
deixaram filhos mas puseram o seu amor em quem por lá passou. Amigos e
vizinhos. Cândida era a simpatia das ruas. Era e é, que lá está ainda.
Todos os dias ao final da tarde queria estar perto do mar. Queria
recordar Augusto no seu silêncio mais íntimo. Silêncio ensurdecedor e
distante de uma rotina. Ela e o mar. Rugas de vida e de respeito por um
amor tão grande e verdadeiro. Pelo Augusto e pelo bairro. Pela vida em
si. Injusta e boa. Conjugação de emoções estranhas naquelas tardes.
Dizia que o Sol não a respeitava porque não a deixava sozinha. Quando se
punha, chorava porque precisava dele para ver o mar. Misto de
sentimentos. Confusa de relações.
Olhos esverdeados com o Sol,
castanhos na escuridão. Como o amor pelo Augusto. Dizia que a vida sem
Augusto era uma manhã sem os pardais. Perde-se a magia. Ensinou-me que
quando há perdas chegadas, a melhor forma de as superar não era mandar
para trás das costas. Era fechar os olhos, ao Sol, e imaginar cada traço
da pessoa de forma a edificá-la ao calor. Senti-la perto e quente. Não
esquecer mas sim recordar palavras e frases que nem o vento abafava.
Dizia que o Augusto estava ali, a cada final de tarde. Andava curvada
por respeito à vida, por gratidão ao facto de não terem levado as
memórias nem o pensamento.
Disse-me que só perdia quem se
esquecia. Que só morria quem não voltava atrás no tempo. A liberdade de
pensamento é inesgotável. Podemos ir onde quisermos, podemos fazer o que
quisermos dentro de nós. Podemos falar com quem quisermos, na língua
que quisermos. Podemos criar a nossa própria língua. Podemos viajar no
tempo e mudar de lugar. Podemos reviver os momentos como se eles
tivessem a acontecer. Ali e agora.
“Posso recordar o Augusto aqui, neste muro, onde nos sentávamos antes do Sol se pôr.
Não o vejo, mas esta grande estrela faz o favor de lhe continuar a
aquecer o lugar. Por isso ele está aqui sentado comigo. O horizonte não
me deixa mentir. Não lhe consigo tocar tal como não consigo tocar
naquela linha ali ao fundo. Mas ela faz-se presente.”
Na ânsia de mais uma tarde bem acompanhada, o Sol pôs-se e Cândida chorou.
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