terça-feira, 21 de maio de 2013

A VELHA DO RESTELO

Um final de tarde de Verão. O Sol despede-se do Restelo com intensidade. Olhos cerrados e sobrancelhas franzidas acompanham o calor do rosto. Há uma velha num muro. Oitenta e três anos de experiência, oitenta e três anos de vida, de convívio, de dor e de amor. Conversámos e percebi que na vida há mais do que a manhã, do que a tarde, do que a noite, do que a Primavera, do que o Verão, do que o Outono e do que o Inverno. Há mais do que o tempo e mais do que o espaço. Há o gesto, há o medo. Há o defeito e a acção. Toda de preto e sozinha no espaço. Louca de saudades e cansada do tempo. Perdeu Augusto há mais de doze anos. Viviam juntos ali no bairro. Tinham uma casa pequena. Nunca deixaram filhos mas puseram o seu amor em quem por lá passou. Amigos e vizinhos. Cândida era a simpatia das ruas. Era e é, que lá está ainda. Todos os dias ao final da tarde queria estar perto do mar. Queria recordar Augusto no seu silêncio mais íntimo. Silêncio ensurdecedor e distante de uma rotina. Ela e o mar. Rugas de vida e de respeito por um amor tão grande e verdadeiro. Pelo Augusto e pelo bairro. Pela vida em si. Injusta e boa. Conjugação de emoções estranhas naquelas tardes. Dizia que o Sol não a respeitava porque não a deixava sozinha. Quando se punha, chorava porque precisava dele para ver o mar. Misto de sentimentos. Confusa de relações.

Olhos esverdeados com o Sol, castanhos na escuridão. Como o amor pelo Augusto. Dizia que a vida sem Augusto era uma manhã sem os pardais. Perde-se a magia. Ensinou-me que quando há perdas chegadas, a melhor forma de as superar não era mandar para trás das costas. Era fechar os olhos, ao Sol, e imaginar cada traço da pessoa de forma a edificá-la ao calor. Senti-la perto e quente. Não esquecer mas sim recordar palavras e frases que nem o vento abafava. Dizia que o Augusto estava ali, a cada final de tarde. Andava curvada por respeito à vida, por gratidão ao facto de não terem levado as memórias nem o pensamento.

Disse-me que só perdia quem se esquecia. Que só morria quem não voltava atrás no tempo. A liberdade de pensamento é inesgotável. Podemos ir onde quisermos, podemos fazer o que quisermos dentro de nós. Podemos falar com quem quisermos, na língua que quisermos. Podemos criar a nossa própria língua. Podemos viajar no tempo e mudar de lugar. Podemos reviver os momentos como se eles tivessem a acontecer. Ali e agora.
“Posso recordar o Augusto aqui, neste muro, onde nos sentávamos antes do Sol se pôr.

Não o vejo, mas esta grande estrela faz o favor de lhe continuar a aquecer o lugar. Por isso ele está aqui sentado comigo. O horizonte não me deixa mentir. Não lhe consigo tocar tal como não consigo tocar naquela linha ali ao fundo. Mas ela faz-se presente.”
Na ânsia de mais uma tarde bem acompanhada, o Sol pôs-se e Cândida chorou.

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