quarta-feira, 29 de maio de 2013

POEMAS DO BAÚ

O SAPATEIRO

A quem daria eu o sapato roto na ponta?
Cansado de caminho e conhecedor do roteiro
Aliado ao trabalho, o talento sem conta
Encontrei-o na curva. O famoso sapateiro.

"Andei, dancei, esgotei e desgastei
Sapato barato, estrada num fim abstrato
Sonhei, comecei, visitei e amei
No infinito do andar e do amor ingrato"

Movido a palavras e vivido na calçada
O sapato é a ponte entre o pensamento e o destino
 Vida de trabalho e mão calejada
O sapateiro permite o divagar repentino.

"Nas calçadas, nas estradas, nos movimentos rotineiros
Vivi agarrado aos percursos perdidos
De amor ao couro, à vida e com fé nos primeiros
Esperarei curvado perante fidalgos rendidos".


Dá vida ao sapato, dá corpo ao andar
O sapateiro deu-me a conhecer o terreno
Tenho a esperança de um dia regressar
Na intenção de um pôr-do-sol sereno.
 

terça-feira, 21 de maio de 2013

A VELHA DO RESTELO

Um final de tarde de Verão. O Sol despede-se do Restelo com intensidade. Olhos cerrados e sobrancelhas franzidas acompanham o calor do rosto. Há uma velha num muro. Oitenta e três anos de experiência, oitenta e três anos de vida, de convívio, de dor e de amor. Conversámos e percebi que na vida há mais do que a manhã, do que a tarde, do que a noite, do que a Primavera, do que o Verão, do que o Outono e do que o Inverno. Há mais do que o tempo e mais do que o espaço. Há o gesto, há o medo. Há o defeito e a acção. Toda de preto e sozinha no espaço. Louca de saudades e cansada do tempo. Perdeu Augusto há mais de doze anos. Viviam juntos ali no bairro. Tinham uma casa pequena. Nunca deixaram filhos mas puseram o seu amor em quem por lá passou. Amigos e vizinhos. Cândida era a simpatia das ruas. Era e é, que lá está ainda. Todos os dias ao final da tarde queria estar perto do mar. Queria recordar Augusto no seu silêncio mais íntimo. Silêncio ensurdecedor e distante de uma rotina. Ela e o mar. Rugas de vida e de respeito por um amor tão grande e verdadeiro. Pelo Augusto e pelo bairro. Pela vida em si. Injusta e boa. Conjugação de emoções estranhas naquelas tardes. Dizia que o Sol não a respeitava porque não a deixava sozinha. Quando se punha, chorava porque precisava dele para ver o mar. Misto de sentimentos. Confusa de relações.

Olhos esverdeados com o Sol, castanhos na escuridão. Como o amor pelo Augusto. Dizia que a vida sem Augusto era uma manhã sem os pardais. Perde-se a magia. Ensinou-me que quando há perdas chegadas, a melhor forma de as superar não era mandar para trás das costas. Era fechar os olhos, ao Sol, e imaginar cada traço da pessoa de forma a edificá-la ao calor. Senti-la perto e quente. Não esquecer mas sim recordar palavras e frases que nem o vento abafava. Dizia que o Augusto estava ali, a cada final de tarde. Andava curvada por respeito à vida, por gratidão ao facto de não terem levado as memórias nem o pensamento.

Disse-me que só perdia quem se esquecia. Que só morria quem não voltava atrás no tempo. A liberdade de pensamento é inesgotável. Podemos ir onde quisermos, podemos fazer o que quisermos dentro de nós. Podemos falar com quem quisermos, na língua que quisermos. Podemos criar a nossa própria língua. Podemos viajar no tempo e mudar de lugar. Podemos reviver os momentos como se eles tivessem a acontecer. Ali e agora.
“Posso recordar o Augusto aqui, neste muro, onde nos sentávamos antes do Sol se pôr.

Não o vejo, mas esta grande estrela faz o favor de lhe continuar a aquecer o lugar. Por isso ele está aqui sentado comigo. O horizonte não me deixa mentir. Não lhe consigo tocar tal como não consigo tocar naquela linha ali ao fundo. Mas ela faz-se presente.”
Na ânsia de mais uma tarde bem acompanhada, o Sol pôs-se e Cândida chorou.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O MEU BIGODE TEM PORTAGEM



“O meu bigode tem portagem”. Esta é a expressão correcta que designa todo o dilema de um jovem adulto com problemas de penugem. Ah, como é frustrante estar rodeado de gente com pêlo. Barba grande, barba lisa. Bigode espesso e aparado. Todos os dias convivo com pessoas que estão de bem com a barba. Relação intrínseca esta do pêlo com a pessoa. Aparece com a mania que é boa e diz que veio para ficar.

Afirma-se protectora e convence-nos da sua eficácia. Gostava de poder viver esta experiência e esta relação de amor/ódio com a barba. De manhã olho em frente e vejo grupos. Grupos de pêlos espalhados pelo rosto. Uns mais pequenos dando a ideia de grupo à parte. Não se querem dar com os outros demais prolongamentos filiformes que cresceram com esperança. É a chamada penugem díspar e insegura. Malditos que cortaram relações com a epiderme. Lado esquerdo e lado direito. Muito em cima e pouco em baixo. Disforme de frente e repugnante de perfil.

Não sou o único que vive esta angústia todas as manhãs e que atinge o culminar de um desespero quando lá vai de gillette. Três minutos depois, o dilema cai no esquecimento. Mas vai com ar peneirento e com a certeza de que volta passadas duas semanas. Lá estão eles outra vez. Aparecem com vergonha. Timidez para com o folículo piloso e resistentes à protecção térmica. Apareçam e dêem-me algum estilo por favor.

Meses e anos neste conflito. Desisto mas ganho motivação para deixar o bigode. Este mais atento aos meus problemas e mais solidário com a minha imagem. Negócio fechado. Aparece com estilo mas vem com portagem. Noto alguma altivez no seu discurso e na sua maneira de aparecer. Como quem diz: “dou-te o que precisas mas tenho condições porque hoje em dia nada é de borla. Também não está fácil para mim” Presunçoso e arrogante o cabrão do bigode. Dá-me nervos mas preciso dele “Cresço nas pontas e dou-te um toque de classe monárquica mas estamos em tempo de contenção. Não apareço no meio. Dá-me trabalho.”
“Mariachi, Cantinflas, filósofo e Vanessa Fernandes”, já me chamaram de tudo mas sei que tenho o poder quando a lâmina está do meu lado. O gajo sabe que tem portagem, mas eu vou de via verde.

"PSHHT Ó FÁCHAVOR"



O português é castiço. Portugal tem um povo genuíno com um estilo inconfundível. Há formas e expressões que são nossas. Muito nossas e nos distinguem do que está fora deste rectângulo. Seja um empregado de café, seja um mecânico, um paquete, um taxista. Temos pérolas escondidas nas zonas mais recônditas do país. Pessoas por entre as demais ruelas de Lisboa e Porto. A "chico-espertiçe" é muito portuguesa, muito lusitana.

Há gestos e comportamentos que nos distinguem, que nos caracterizam, que nos tornam tão diferentes e tão especiais. É estar atento. É ouvir com atenção o empregado de balcão com a célebre frase do "queria, já não quer?" enquanto passa um pano por debaixo da bandeja. Nós suspiramos porque já não temos argumentos para usar perante tal expressão. O sorriso matreiro está presente. Só o dente é que não. Mas faz parte de nós. A genuinidade passa por aqui. O senhor do quiosque. Ele já sabe o que tu fumas, ele já sabe o que tu lês. "São 3 euros e meio", estende-te a mão calejada e cheia de vida. Tem troco e unhas por cortar. É ser popular. É ouvir o fantástico decibel acima do previsto nos mercados. Cheiro a mar que está tão perto. "Pshht ó fachavor" é marca registada do empregado que te serve todos os dias aquilo que faz com que trabalhes mais bem disposto, ou mais acordado.

Uma viagem de táxi sem uma: "p*ta que pariu o trânsito" ou "ca granda regueifa" é banal. O bigode amarelo no meio de quem já teve uma relação com J&B, a barriga de quem já se envolveu com uma imperial, as bochechas rosadas de quem trai com o tino. Alentejo, Douro, Dão. Temos muito. Temos bons.

O que seria de nós sem o "eiiiish ó amigo, isto está complicado" do mecânico que o podia ter arranjado mas fez outras coisas. A nossa genuinidade passa por aqui juntamente com expressões que só o rosto de um português conhece. Não é má educação, é um modo de vida. Não fazem mal, não mordem, são irmãos. Nos Açores soltam a palavra "jagode", cá usa-se o "labrego". Porquê? Não, é a simplicidade de um povo que já viu muita coisa com o passar do tempo. Na baixa da cidade ou na alta, estão escondidos. Nos Santos Populares, revelam-se, mostram-se ao país.

Pessoas com histórias de vida incríveis, pessoas que não fizeram nada, pessoas que acordam, que se sentam e que discutem. Falam muito, falam bem e falam mais. Estão perto e dão-nos o topping popular.

Um bem haja, Portugal castiço!

HÁ VIDA EM QUATRO RODAS


- Gonçalo Câmara

Falo de táxis. Não, não vou gozar nem trazer ao de cima qualquer conversa de táxi a caminho ou a vir da noite. Vou congratular, homenagear e agradecer o que tenho ouvido nos últimos dias dentro de um táxi. Sim, cospem para o chão, sim dizem palavrões a cada palavra e sim, mandam vir com tudo e todos. Mas como dizia um senhor bem famoso e conhecido de todos: “Atire a primeira pedra quem nunca o fez”.
Entro dentro do táxi e dou as indicações. Campolide era o destino. Eu já não estava muito bem mas percebi que estávamos no caminho certo. O taxista vinha a falar de forma a que eu não adormecesse porque ele precisava das indicações exactas e não queria entrar por caminhos desconhecidos. No meio de balanços, lombas e flashbacks da noite, vinha uma preocupação a cada cinco minutos. “Tenho apenas 5 euros e meio”. Chegados ao destino, olho para o taxímetro e reparo que tínhamos atingido os 7 euros. “Deixe lá. Dê-me só os cinco euros. Guarde essa moeda de cinquenta para beber um café amanhã. Vai precisar”. Agradeci e saí. Ainda hoje penso naquele senhor. Com alguma idade, rosto duro e com o peso das dificuldades da vida nas costas. A vida não está fácil para ninguém e deixou-me seguir. Saí com menos uma nota mas com muito mais sentido de gratidão.

A caminho de casa, a pé, passo por uma praça de táxis. Oito ou nove formavam a linha. O apito do hotel era soado e lá ia um. Cada um esperava a sua vez. Cada um sentia a ansiedade de percorrer mais um caminho. Nisto vejo que um dos taxistas, enquanto esperava pelas pessoas, via notícias on-line no seu tablet. Achei curioso. Aproximei-me e perguntei se havia novidades sobre o derby. Antes de qualquer resposta disse: “Sim, este iPad é meu. O senhor pode achar estranho mas tive dinheiro para o comprar. Há dois meses atrás era advogado”. Fiquei pasmado ao ouvir aquilo e ao mesmo tempo queria conhecer a história por detrás de tanta angústia. “Estudei na Clássica. Fui assistente e ingressei numa sociedade de advogados. No escritório trabalhávamos sete e havia gente fora do país. Do dia para a noite, fiquei sem nada”. Não tinha argumentos para usar, não tinha palavras que saíssem por muito que quisesse. Desejei boa noite e avancei. Saí sem vontade de falar mas com vontade de ajudar.

18:32h de uma sexta-feira. Hora de ponta. Estou atrasado para um evento. Entro no táxi com alguma pressa e peço por tudo para que descubra o caminho mais rápido até à Quinta das Conchas. “Farei o que puder”. Assim seguimos. Entre olhares de relógio e de janela, o tempo corria e o carro não andava. Pára arranca, pára arranca. Rotina da semana, vontade da cidade chegar a casa. Zapping de rádios e abertura de vidros. A pressão dos dois lados e uma grande falta de atenção. Chegado ao destino, olho e reparo que não foi ligado o taxímetro. Meto as mãos à cara e estou disposto a dar 10 euros. Seria mais ou menos o preço certo do trajecto. “Não se preocupe. A distracção foi minha. Não estou capaz de fazer as contas e ando com a cabeça fora do lugar. As coisas não têm corrido bem. Dê-me só três euros para ir jantar à roulote.” “Eu faço questão de lhe dar esta nova. Por favor, aceite”. “Obrigado mas não vou aceitar. Não fui profissional. Saia de consciência tranquila”. Saí com menos três euros mas com muito mais vontade de estar atento a quem precisa. Passam por nós todos os dias. Cruzamos vidas e seguimos. Nunca sabemos o que se passa do lado de lá.

Estas são histórias reais de conversas em táxis. Não foram seguidas porque não ando assim tantas vezes de táxi mas, compiladas, trazem-me à memória momentos fortes.

Obrigado o Senhor Artur e ao Senhor António. O terceiro taxista não cheguei a apanhar o nome mas espero apanhá-lo numa próxima viagem...

"QUEM ÉS E QUEM FAZES SER"

Olá,

Antes de mais obrigado. Pelo porto de abrigo, pelo local seguro. Pela conversa e pelo desabafo. Obrigado pelo sentido de partilha e pela preocupação. Sou profundamente agradecido pela pessoas que és e pela pessoa que me fazes ser. Ainda assim gostava de te dizer que às vezes só quero um abraço, que às vezes só quero uma palavra e que às vezes simplesmente não quero nada. Não quero ouvir, não quero saber. Sinto-me culpado por algum atrito que possa existir na nossa relação. São perguntas a mais para poucas pessoas. São histórias a mais para um dia. Houve alturas em que a obediência não se fez ver. Houve vezes em que o castigo não foi sentido. Mas carregaste-me e devo-te isso. Devo-te toda a tolerância em momentos de angústia. Devo-te todo o carinho em momentos de desamparo. Tens as tuas fragilidades, tens os teus minutos de loucura saudável. Tens os teus defeitos. Não mostras ou mostras pouco aquilo que queria que mostrasses ao mundo, à vida, ao dia, a nós, a mim.

Sinto que desiludi em aspectos onde o teu orgulho estava lá. Sinto que conquistei em situações onde a tua indiferença era cabeça de cartaz. A vida sempre foi feita de dois momentos: os bons e os menos bons. A nossa relação foi feita com base na vida. Chamámos apenas de momento mau àquele onde a fraqueza se fez acompanhar da inércia. Contigo e comigo. Cara-a-cara. Olho para um a fotografia. Não é apenas um pedaço de papel com imagens. É um objecto com história e com vida que ganham diálogo aos meus olhos. Cresci e aprendi. Construímos, descontruímos, trocámos e ameaçámos. Mas também ouvimos, sentimos, compensámos e amparámos.

Deste-me na cabeça o suficiente para distinguir a linha do limite. Para ver o meu lado e o outro lado. Para compreender o lado onde querias estar e o lado onde querias que eu estivesse, contigo. Mas o bom da vida é percebermos que a certa altura o teu “apontar” pode ser um desvio daquilo que eu posso conquistar pela minha própria cabeça. A linha do limite quer ganhar independência comigo. No entanto, foste tu que nos apresentaste e isso não se esquece.

Contigo sinto que não está nos gestos, está no olhar. Não preciso de sentir o abraço, o beijo ou o encosto. Preciso sentir que olhas como és, Mãe. E como me fazes ser, Filho.

Um beijo